O POR DO SOL
As carências afectivas, as necessidades interiores, o estado de ansiedade, o “auto-show off”, o “tenho que ir se não morro”, o desconforto constante do “estar aqui”, são algumas das características do nosso tempo.
Conheço o mecanismo. Estudei-o por obrigação de objectivos académicos e profissionais. Assisto todos os dias ao desfechar de comportamentos relacionados com esses estados de espírito. Todavia, também eu, sofro dalgumas dessas “doenças” que resultam sempre num estado de insatisfação permanente…
Por isso, a decisão imediata de ir assistir ao por do sol na Ursa …
Por experiência do e no local, já sei de antemão que, só a partir dos primeiros dias de Setembro (e de certeza a partir do fim desse mês), poderei assistir a fins de tarde limpos, sem nuvens, mares calmos, gaivotas poisadas… Mas sempre vou tentando, fora destes timings, ano após ano, repetindo sempre a mesma asneira, correndo para a Roca e para a Ursa para assistir aos célebres “por de sol” …
Mais uma vez hoje, como seria de esperar, o local estava ventoso, com nuvens baixas e do sol nem vê-lo.
Cheguei, olhei, sorri, vesti um tapa vento e lá fui a procura do nada.
Nós devemos sempre ir… Custe o que custar… São os primeiros passos, as primeiras rajadas de vento, as lágrimas nos olhos que nos alimentam e dão força para continuar… Depois a dor de dentro e de fora vai desaparecendo… a mente e os olhos pouco a pouco vão enxergando o que afinal estava escondido… o selvagem dentro de nós, começa a ouvir melhor, a apanhar os cheiros, a arfar com o ultrapassar dos obstáculos. Um calorzinho inicia a sua escalada dentro do nosso espírito e, finalmente, chegados a alguns locais, começamos a gostar.
Lá dizia o tal: Vale sempre a pena quando a alma não é pequena…
O mar está bravo, duma cor, predominantemente verde escura, com laivos de castanho e doutras cores que não têm descrição. As vagas batem raivosas contra as rochas… Coroas de espuma e salpicos de salsugem desabridam nos ventos …
As gaivotas tentam manter-se bolinando ao vento mas, face a irregularidade do mesmo e das suas constantes rajadas, picam como caças supersónicos no sentido da direcção mais favorável, dando seus gritos estridentes…
As minhas narinas abertas sacam aquele cheiro da maresia e, por vezes, outros que volteiam sobre a minha cabeça despenteando-me… Agacho-me, escorrendo entre os rochedos da descida, agarrando-me com as mãos as saliências das pedras, procurando bem o sítio onde vou pousar o bico das botas… De vez em quando sento-me num local mais confortável e olho a paisagem que me rodeia… escarpas, rochas, vegetação rasteira batida pelo vento, pequenas grutas de roedores, ninhos de gaivotas e albatrozes…
Os pequenos tufos de plantas próprias destes locais e até algumas que aqui sòmente existem, estão implantadas onde quer que haja um nada de terra.
São, como não podiam deixar de o ser, de constituição aparentemente rude, simples, armadas do indispensável para sobreviver. Têem flores que a primeira vista parecem desprovidas de beleza fantasiosa. Todavia, como uma observação mais atenta verificamos o grau de elaboração complexo e ao mesmo tempo sintético. São as cores, o desenho, a fragrância, a constituição, verdadeiramente admiráveis e preparadas para cumprir os seus objectivos polinizadores.
Chego a praia de seixos arredondados pelo constante rock and roll dos séculos.
As escarpas ponteagudas e imensas penetrando no oceano, as rochas acachapadas e cobertas de algas, o marulhar forte do rebound das ondas arrastando os seixos, enchem-me o espírito com imagens fortes. Sento-me ali, já sem vento, a olhar para aquele fandango que primeiro assusta, depois preenche e de seguida me hipnotisa.
Dá-me vontade de entrar e ficar para lá do remanso, no verde escuro e deixar-me embalar até a noite dos tempos como num ventre aberto.
Para ali vai-se e fica-se…
E assim sempre acontece comigo… Não dou pelo regresso. Venho envolvido numa casca de felicidade, a cheirar a mar. Tenho cabelos de algas e lábios de ameijoa. Minhas mãos e braços são polvos multicores agarrando a vida.
O feio esbate-se na aguarela que eu era quando cheguei e transforma-se numa água-forte ou num óleo elaborado, com recortes óbvios da minha personalidade.
O por do sol, sem sol enche-me a alma de gratidão por me ser permitido estar aqui e agora a mostrar ao meu Criador que mereceu a pena dar-me sopro e vida.