sexta-feira, 20 de abril de 2007

Por do sol


O POR DO SOL


As carências afectivas, as necessidades interiores, o estado de ansiedade, o “auto-show off”, o “tenho que ir se não morro”, o desconforto constante do “estar aqui”, são algumas das características do nosso tempo.
Conheço o mecanismo. Estudei-o por obrigação de objectivos académicos e profissionais. Assisto todos os dias ao desfechar de comportamentos relacionados com esses estados de espírito. Todavia, também eu, sofro dalgumas dessas “doenças” que resultam sempre num estado de insatisfação permanente…

Por isso, a decisão imediata de ir assistir ao por do sol na Ursa …
Por experiência do e no local, já sei de antemão que, só a partir dos primeiros dias de Setembro (e de certeza a partir do fim desse mês), poderei assistir a fins de tarde limpos, sem nuvens, mares calmos, gaivotas poisadas… Mas sempre vou tentando, fora destes timings, ano após ano, repetindo sempre a mesma asneira, correndo para a Roca e para a Ursa para assistir aos célebres “por de sol” …

Mais uma vez hoje, como seria de esperar, o local estava ventoso, com nuvens baixas e do sol nem vê-lo.
Cheguei, olhei, sorri, vesti um tapa vento e lá fui a procura do nada.
Nós devemos sempre ir… Custe o que custar… São os primeiros passos, as primeiras rajadas de vento, as lágrimas nos olhos que nos alimentam e dão força para continuar… Depois a dor de dentro e de fora vai desaparecendo… a mente e os olhos pouco a pouco vão enxergando o que afinal estava escondido… o selvagem dentro de nós, começa a ouvir melhor, a apanhar os cheiros, a arfar com o ultrapassar dos obstáculos. Um calorzinho inicia a sua escalada dentro do nosso espírito e, finalmente, chegados a alguns locais, começamos a gostar.
Lá dizia o tal: Vale sempre a pena quando a alma não é pequena…

O mar está bravo, duma cor, predominantemente verde escura, com laivos de castanho e doutras cores que não têm descrição. As vagas batem raivosas contra as rochas… Coroas de espuma e salpicos de salsugem desabridam nos ventos …
As gaivotas tentam manter-se bolinando ao vento mas, face a irregularidade do mesmo e das suas constantes rajadas, picam como caças supersónicos no sentido da direcção mais favorável, dando seus gritos estridentes…
As minhas narinas abertas sacam aquele cheiro da maresia e, por vezes, outros que volteiam sobre a minha cabeça despenteando-me… Agacho-me, escorrendo entre os rochedos da descida, agarrando-me com as mãos as saliências das pedras, procurando bem o sítio onde vou pousar o bico das botas… De vez em quando sento-me num local mais confortável e olho a paisagem que me rodeia… escarpas, rochas, vegetação rasteira batida pelo vento, pequenas grutas de roedores, ninhos de gaivotas e albatrozes…


Os pequenos tufos de plantas próprias destes locais e até algumas que aqui sòmente existem, estão implantadas onde quer que haja um nada de terra.
São, como não podiam deixar de o ser, de constituição aparentemente rude, simples, armadas do indispensável para sobreviver. Têem flores que a primeira vista parecem desprovidas de beleza fantasiosa. Todavia, como uma observação mais atenta verificamos o grau de elaboração complexo e ao mesmo tempo sintético. São as cores, o desenho, a fragrância, a constituição, verdadeiramente admiráveis e preparadas para cumprir os seus objectivos polinizadores.




Chego a praia de seixos arredondados pelo constante rock and roll dos séculos.
As escarpas ponteagudas e imensas penetrando no oceano, as rochas acachapadas e cobertas de algas, o marulhar forte do rebound das ondas arrastando os seixos, enchem-me o espírito com imagens fortes. Sento-me ali, já sem vento, a olhar para aquele fandango que primeiro assusta, depois preenche e de seguida me hipnotisa.
Dá-me vontade de entrar e ficar para lá do remanso, no verde escuro e deixar-me embalar até a noite dos tempos como num ventre aberto.

Para ali vai-se e fica-se…
E assim sempre acontece comigo… Não dou pelo regresso. Venho envolvido numa casca de felicidade, a cheirar a mar. Tenho cabelos de algas e lábios de ameijoa. Minhas mãos e braços são polvos multicores agarrando a vida.
O feio esbate-se na aguarela que eu era quando cheguei e transforma-se numa água-forte ou num óleo elaborado, com recortes óbvios da minha personalidade.

O por do sol, sem sol enche-me a alma de gratidão por me ser permitido estar aqui e agora a mostrar ao meu Criador que mereceu a pena dar-me sopro e vida.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Shostakovich

Estou assim como o 3º andamento do concerto de violino nº 1 de Shostakovich. Meio scherzando meio passacaglia num andante inexorável e cheio de vergonha por sentir pena de mim próprio. Flutuo entre o que julgo ser o meu eu real no qual desabam, ainda, todas as respostas que tenho de dar para comer amanhã e o meu eu irreal e os seus oníricos quatro espíritos.
Recordo-me de diversos livros que li há muitos anos escritos pelo Lobsang Rampa. O primeiro e o que mais me impressionou “A Terceira Visão” referia um fenómeno parecido com a minha situação neste momento. O autor descreve as sensações relacionadas com a contemplação da saída do seu espírito, que se eleva no etéreo e que contempla o seu próprio corpo material. Todas as imperfeições, cansaços e ilusões estão ali.

Uns homens que não conheço discutem em frente a mim mas não dão pela minha presença... Aquela mulher grita e vocifera palavras sem nexo intercortadas de choro, agarra e contorce desesperadamente as mãos, saem-lhe líquidos pelo nariz que se misturam com gafanhotos cuspidos e lágrimas que arrastam consigo traços da maquilhagem e de rímel... Sai-lhe da boca um arrazoado de sons “...áca...ojo...erda...graçaaaada...huaaaaaaa...”
Entretanto, o violino de Vengerov quer fugir a este Shostakovitch e mergulhar em Mozart que brinca e ri descaradamente com algumas notas musicais.... ao seu redor (mas que coisa estranha e impossível) Telleman, Vivaldi e Haendel saltitam nos seus sapatitos de salto alto e fivela dourada, cada qual com o aspecto mais sepulcral e fantasmagórico como que saídos dum filme de Polansky e eu, aqui, alpendorado a assistir... Todavia, nem tudo é fácil, porque agora que parecia que as músicas de fundo e os salamaleques aliviariam as cenas que presencio, me aparece o Charles Aznavour, roto, judeu e com cara de fome a cantar “Que c’est triste Venice”. Mais saladas russas com danças do Príncipe Igor e o Borodine sentado na borda de pedra numa das fontes de água nos Jardins de Versalhes a comer delícias do mar e lagosta, cozinhadas no grande caldeirão das ideias já feitas e servidas vezes sem conta. Há aqui umas gôndolas que acompanhadas por cisnes de papelão do Ludwig II vão embatendo na Catedral de Santa Sofia. Os violinos de Vivaldi choram e Wagner a um canto da Catedral de S.Marcos tenta por ordem nas colunas que se contorcem como massa de pão enrolada com as mãos. Uma personagem ajuda-o afanosamente e quando se vira de caras para o local onde me encontro verifico com alguma surpresa que se trata do Abade Faria que diz: “Ouve Edmundo, tens de livrar-te para sempre da surda, atira-te deste penhasco... salta das tuas imperfeições e precipita-te no mar azul profundo... volta ao ventre da tua mãe.”
Agora sim aparece-me um desconhecido – apesar do seu rosto me ser muito familiar – que diz chamar-se Paulo. Começa o seu discurso dizendo: “Olhe a última vez que falámos, estava eu dentro de si e a espera de ser gerado. Desde que nasci que lá nos fomos entendendo eu a falar japonês e você tibetano. Melhor se entendiam os vegetais no quintal do que nós.Por isso lhe digo que eu não choro. Um homem não chora. Como vê aprendi a lição. Possivelmente, esta será a derradeira vez que nos falaremos porque, como sabe, tenho de partir para a constelação Orion e, penso que só voltarei daqui a 1.000.000.000 de anos....luz. E partiu. Partiu ele e partiu-se-me a alma. Aquele, parece-me que era o meu filho e, se tiver sorte, só o verei daqui a muito tempo quando os meus olhos já não conseguirem enxergar. Na minha flutuação fiquei meditabundo e sem jeito. É para isto que nós andamos aqui a penar ?
Fui pousando os pés no firme e resvalei muito lentamente para o chão que estava quente e acolhedor aninhando-me sobre mim com a fronte repousada na palma da mão direita tendo a esquerda entre as pernas e contemplei sem presente, nem futuro as minhas chagas.

domingo, 1 de abril de 2007

Aquela luz

O gato de Schlesinger (Acto DOIS)

Galopo rindo no espaço sideral
Montado num cavalo de nada
Meu nome tonitruante é Phenixz
Que mantém bem acima o meu astral

Ritter toca pra mim uma melodia
De sons irritantes y desconexos
E a sua música parece a minha vida:
Algo sem compasso e sem harmonia.

Numa mescla de sentidos complexos,
Una ténue luz bruxuleante cintila
Indicando-me um caminho que recuso.
Ela me aperta em seus amplexos

Me vira
Me anima
Me mima
Me tira

O que de melhor tenho em minh’alma.
Pouco a pouco começo a dormir
Com doçura, cansado, a sorrir
E abraço a sua imagem com calma

quinta-feira, 29 de março de 2007

Rejeições

Contribuição para a organização dum projecto de “não rejeição”

Meus amigos e companheiros de viagem,
Após um período de reflexão, sobre as questões que me tem posto sobre as sucessivas ocorrências relacionadas com processos de rejeição, venho depositar nas vossas mentes alguns raciocínios que, suponho, venham a contribuir para o desenvolvimento de estratégias tendentes a optimizar os vossos projectos futuros nesta área.

Começo por abordar algumas questões relacionadas com as características desses processos ditos de rejeição, em jeito de regras ou de máximas de Mr. De La Palisse, assim:
- Quem é rejeitado, também pode rejeitar;-
v Rejeição está na moda, admite sempre reciclagem;
v Ninguém pode rejeitar se já não tiver sido rejeitado (nesta regra o indivíduo que rejeita deve ter sempre, pelo menos, três rejeições anteriores);
v Rejeição é sempre boa para a pele e para os olhos (Dado que é acompanhada de manifestações corporais tais como, choro, tremuras e suores frios). Deve aplicar-se três vezes por dia. Uma rejeição de manhã, outra a hora do almoço e outra na hora de jantar;
v Quando sentimos que nos foi aplicado um processo de rejeição, deve de imediato tentar-se um segundo processo, a fim de criar uma capa de resistência que permita resistir a doses industriais de rejeições sem ficar doente;
v Só se devem admitir para estes estudos rejeições de qualidade. Subprodutos tais como , faltas a encontros, telefonemas secos, conversa desmaiada, olás distraídos não são considerados;
v Mais vale uma boa rejeição que um mau amante;
v Quem rejeita tem medo de ser rejeitado;
v Uma rejeição bem aplicada é sempre desejável pela possibilidade de contribuir para o desenvolvimento de processos de auto estima mais sofisticados;
v Os rejeitadores compulsivos (isto é, aqueles que nos dizem sempre que não) são, normalmente, tolos e, verificou-se em estudos recentes, que sofrem de miopia mental crónica, daí que após sucessivas rejeições acabem sempre por fazer a pior escolha possível.

Devem pois, analisar com atenção algumas destas regras e se acharem, que alguma delas constitue uma completa estupidez; rejeitem-na…

Tem chegado ao meu conhecimento que alguns companheiros mais sensíveis, vivem obcecados por esta problemática ao ponto de, em alguns casos, se isolarem e viverem como ermitas evitando, deste modo, a confrontação com processos deste tipo. Para esses tenho algumas palavras de conforto e alento e a promessa que tudo farei para os ajudar a vencer os seus inimigos. Para já devem tentar treinar-se nas técnicas do “piparote” que lhes darão a ginástica e a vivacidade necessárias para a luta (Devem treinar todos os dias, indo a repartições de finanças, conservatórias do registo civil, serviços camarários e, em especial, fazendo pedidos formais de dinheiro a bancos e companhias de seguros).
Para aqueles que, surdos aos meus apelos, continuam obstinadamente a esconder-se, para evitar situações em que poderão vir a ser rejeitados, também, solidariamente, ponho a sua disposição o número de tijolos, cimento e as respectivas ferramentas que permitirão entaipar-se, convenientemente, até ao dia do Juízo Final livres de quaisquer contactos.
Finalmente quero-vos dizer que esta minha alocução se baseia no facto de ter sido rejeitado vezes sem conta e, por conseguinte, pensar que tenho alguma experiência na matéria. De qualquer forma, se acharem que sou exagerado, poderão em qualquer altura, marimbar-se para mim e rejeitar-me…
Companheiros e amigos termino esta minha intervenção solicitando-lhes que me contactem se encontrarem algum obstáculo na consecução dos vossos objectivos.

Sempre ao vosso dispor (se puder e tiver tempo…)

Fernando Rejeitado das Costas Enjeitadinho

quarta-feira, 28 de março de 2007

Nada acontece por acaso

O Sindroma do gato de Schlesinger

Estou aqui – estarei? - como um velho guerreiro, sentado nesta pedra,
Apoiado no meu antebraço flectido. Estou absorto, estupidificado sem pensar.
Névoas brancas, em farrapos, vogam perto dos meus pés em terra…
Eu não quero sair daqui. Quero estar aqui, só. Somente por estar.

Acaso estarei a recuperar forças para voltar a lutar?
Porventura aquilo que sinto será uma pausa para recomeçar?
Uma tomada de respiração? Uma quebra de energia?
Uma cogitação necessária, talvez uma análise de fim de dia?

Então porque não sinto nenhuma fadiga corporal?
Porque me sobe, esta náusea, esta raiva animal?
Uma necessidade de não pensar, flutuar, esquecer, dormir?
Porque é que os meus olhos estão molhados e tremo a rir?
a rir…
a rir..
este riso de louco…
porquê ?